sexta-feira, 26 de junho de 2009

Cortado a Meio

Era um menino prodígio muito peculiar : lia livros apenas
até metade da estória.

Debaixo dos lençóis, com a ajuda de uma pequena lanterna.

À medida que a leitura decorria , o entusiasmo esmorecia.

Era como se fosse um membro da assistência percebendo
o truque mágico da mulher serrada a meio.

E ficasse fascinado apenas por uma das partes.

Porém, não ficava triste, pois o entusiasmo, como um cigarro
mal apagado, reacendia-se sempre na abertura de um novo livro.

Quando se sentia aborrecido, deixava que a memória se recreasse,
baralhasse as cartas do sonho: cosia um romance de aventuras a um
enredo existencialista, um livro de poemas a um ensaio de teoria política.

O menino fez-se adulto, o adulto fez-se velho; o velho fez-se pó ou cinza.

Levou a sua vida até ao fim, ao contrário da sua biblioteca, composta

por tantas e tantas vidas cortadas ao meio.


Bruno Sousa Villar

5 comentários:

Anónimo disse...

Dilacerante!

bruno vilar disse...

Obrigado, caro sulfúrico.

gabriela piccini disse...

Fuertisimo, me encantó! Un abrazo

Luisa Fontes disse...

Talvez triste, talvez não! O final sempre em aberto. Gostei muito, obrigada.

Pedro S. Martins disse...

Há finais de estórias que apenas o leitor pode escrever. Óptimo poema, Bruno.