domingo, 7 de março de 2010

Filosofia Barata

O meu avô nasceu no dia vinte e quatro

de Dezembro, véspera de natal. Nesta noite

celebraria noventa e cinco anos. Nesta noite

receberia presentes e cumprimentos.

O meu avô já morreu, numa cama de hospital

amarrado porque queria soltar-se, a expectoração

cumulada presa na garganta até deixar

de conseguir respirar

Visitei-o um par de vezes; colocaram-no num quarto

em cuja cama ao lado morria um senhor de noventa e seis-

vítima de AVC.

Voltei ao hospital quando já só restava o meu avô em corpo

vestido de fato e gravata e base lustrando-lhe as faces.

O meu avô conseguiu o impossível: reunir quase toda a

minha família no mesmo lugar. Falei com primos e primas

e tios e tias de circunstância

Como vão as coisas?. Perguntavam.

Vão bem. Respondia.

E tu ali quedo e mudo sem ninguém te perguntar nada,

sem te estenderem um cumprimento, como se fosses apenas

um corpo bem vestido e barbeado, o cabelo ralo

penteado com risca ao lado como gostavas, como se fosses

um fantasma como se estivesses morto

Foi por ti que visitei pela primeira e até agora única vez

um cemitério o cemitério onde o teu corpo bem vestido

e barbeado, o cabelo ralo penteado com risca ao lado

como gostavas, foi levado a cremar pois nunca acreditaste

no encanto e no ludíbrio desse bem-falante

vendedor de banha da cobra a que chamam alma.

Desculpa, o gato sentou-se em cima do teclado exigindo

atenção; não é meu, pertence à minha namorada,

a minha nova namorada que tu não conheceste,

adorá-la-ias, é um sonho de mulher e

é disso que tenho medo- dos sonhos.

Como te dizia, foi por ti que conheci a morada dos defuntos,

que enfrentei o asfixiante medo infundado que lhe tinha,

quando o teu corpo foi queimado, lembro-me como tivesse

sido hoje, que não havia cantares de pássaros nas redondezas,

não havia risos, só a estatuária solene e calada dos definitivos.

Parecia que naquela tarde o tempo tinha reduzido sua velocidade

estonteante, travado suavemente para testemunhar ver-nos a

ver-te cumprir o ditado das cinzas

Tu que não davas uma boa metáfora memorialística

para um poema, pois sempre te esforçaste para não

ser alguém; que eras comunista militante do mau vinho

da timidez doentia e de um banho semanal - porque no teu

tempo era assim.

Tu que a única coisa que tinhas de revolucionário era o teu

rosto que alguém, a expensas de umas sobrancelhas farfalhudas,

confundia com o rosto do Álvaro Cunhal

Tu que não foste um dos milhares de judeus salvos do holocausto

por Aristides de Sousa Mendes, “ o Schindler português”.

Que não escreveste cartas de amor salvíficas enquanto combatias

Na segunda das grandes guerras.

Que não empunhaste ao alto as flores de Abril

nem davas uma fotografia bonita

na secção de óbitos do jornal.

Tu, avô,que não lias nem escrevias,

que discursavas engasgado pela falta de vocabulário,

que nenhuma mulher na rua repararia duas vezes, que arrastavas

pelas calçadas tua feira cabisbaixa mijada calças abaixo,

com os cordões desatados dos sapatos cambaleantes,

quase a tropeçar. Que passaste pela filha da puta da vida

como um figurante temente não sei a quê

sobre o qual já desfilou a ficha técnica

da fita.

Naquele cemitério, no teu cemitério

ensinaste-me uma coisa muito simples, que anos ignorei

como filosofia barata

Não temas os mortos.

Assombram-nos muito mais os vivos.

Que a terra te seja leve, meu neto, dependerá da chuva.


Bruno Sousa Villar

quarta-feira, 3 de março de 2010

de autosacramentales. - gabriela piccini -

…como quien vuelve a su don
a su provincia…



II

(colosalmente
un cuerpo se derrama
sobre la cuenca del día

la costumbre afligida
cansado el canto
de golpear entre las hojas)

así como se va desangrando un día cualquiera
una ciudad sin nombre
o cualquier casa sin sus límites marcados
se desangra el tiempo
entre la risa y la desesperación

segunda-feira, 1 de março de 2010

"Lahina Maui - The Wale's sing"


The light dripping technique evokes in this painting an inconsistent water-like effect, which, together with a strong dynamic tension, seems to recall the restlessness of a grey scream. Remote hints to figurativeness characterise the painting, giving it the faculty of generating an anxiety, contaminating on the whole its vibrating message. This effect comes from the denial of what was definite and black, and is now covered with cracks and highly polluting marks of white and grey. How long, one would wonder, shall whales sing?
(Maria Sole Politti)