Desde manhã cedo que me enervaste o suficiente para não me apetecer comer.
Por não ter fome continuo enervado, por isso, vai comendo tu.
Aprendi tudo desde a tua
morte. Passei
de pedra a madeira
e de madeira
a vidro. Frágil e superlativo como
o corpo que sou a viver dentro
de uma rodilha de suspiro.
O cancro não se come. Ainda não
há garfo e faca para o bicho. Ainda tentei
sentir as metástases no céu
da boca. Procuro entre mim
o aço,
encontro-lhe o superlativo no amor
à perda.
Odiar-me-ás quando te confessar
que guardo o teu cancro
na têmpora esquerda. Na direita,
a arma que o matará quando
ele acordar outra vez. Rede
entre o cancro e a sua morte,
o meu escandaloso e
tenebroso
cérebro.
Perdi tudo desde a tua, desde a tua,
a tua, sim, a tua
morte. Ouço-me em dificílimos decibéis
de dor guinchados em palpitações
anónimas (não são
nada anónimas pois estão) com o teu
nome esventrado.
Se as minhas pulsações és tu, também
eu morri de cancro
há tempos. Adeus às coisas aí, esta
é,
indubitavelmente, a obra-prima
do brilho que a paixão tem
no escuro.
Brilha que interrompe.
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pedro s. martins
(Júlio Pomar)
Aqui não vão encontrar
ascensões, apenas o arcaísmo
armadilhado que não cessa
nem estanca
o vazamento da dor.
A tremura denuncia a quem
me vê
tudo o que conteúdo do casaco
aluído no meu corpo. Tudo
na Foz cheira
a esperança, tudo na Foz
é vapor
rico de quem não ficou
na plebe à espera
do derreter da vida.
E toda esta esperança-espectáculo
tem bastidores. Cai(r)am tristezas, caem
tristezas,
(bate vagabundo no sofrimento
de dormires
a estala o banco de jardim;
barba e cabelo sem rédea,
e a tez
cremada pela idade de se ser vivo
são chave para o abismo.)
A fome é tão corrosiva que a consigo
cheirar
daqui. Exilado pela árvore genealógica
da sociedade, és galho
que vai partir (vais
partir.
Vais.
Quebrarás sem restolho
na Foz.)
[Dulcinha-sobrinha, vire a cara para o outro lado. Veja a montra. Está
ali um pedinte, um pedante, um daqueles, está a ver? Dulcinha-filha,
olhe ali um jovem de cabelo solto e de riso
que importa à neve. Dulcinha-afilhada
ignore aquela morte
ali estatelada
no banquinho de jardim.]
Dulce-mulher, cai a maçã,
parte o ramo, arde o cheiro a serpente, fica
o aroma a morangos espremidos na hora. Fosse
aquele o último homem e a colheita estava
estragada, aluía-vos
o estatuto.
Levanto-me do banco, ando e sei que mal me coube
uma pessoa na minha
morte de ontem.
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pedro s. martins
..........Rompendo
recortes de jornal
......acordes de si
ciclos curtos
senhas de acesso para si
.............trancando
.................redemoinhos do outro
.................abusos marcantes
.....rastros de limbo
.........e esmiuçá-lo até ficar
.........................................raso como se
não coubessem coisas entre nós
.....e sermos estribos de animais de porte
.............chorume vendável
.............e qualquer coisa
....que seja atrito e incandescência
como os vagalumes que sempre fomos
e espremermos nossa luz contra um carro
compra mãos de deboche para acenar para ti
................são coisas lindas de si
.................................linhas leves
................................que só se alegam
[Vim pedir licença para entrar na casa pela primeira vez. Obrigado a todos pela presença e convite.]
(Tomé Duarte)
Estamos muito mais descontraídos,
as imagens já devoraram a mente
que tinha para devorar, o corpo
já cedeu à tentação de desenhar
formas e o indomável ser
despenha-se noutro corpo
despenhado há tempo.
Estamos muito mais
relaxados. O dínamo de ser
criança já lá vai, extinguiu-se
quando deixamos de pedalar
na vida. Não vejo nada, não
digo nada, não centrifugo nada
que não seja este cair em cima
de ti, humana de veia fervente.
Esta vida é uma paisagem
truculenta em ti. As musas
morrem sempre antes do artista
cegar a arte; as inspirações disparam
em linhas, o eu – sim, o eu – descende por bocas
até bem
ao fundo.
Musa morta, relaxo eu agora. Tudo
faísca em meu redor. Fumo
em abundância por aqui,
onde os furos de onde
ecoa (seria
um erro
escrever escoa) o sangue da artéria
têm o nome de ralos radiais. Verdade, morro
por um nome que aprendi na televisão: radial.
Fica
o que não dói, fica nada. Levo o alimento
com o final
deste põema radial.
Este não ferve,
fica o põe
ma a marinar em lume brando até não
estar tão relaxado, ou,
até a, ou até, ou
até a musa acordar.
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pedro s. martins
Com saudades dos beijos agudos dos cotovelos e das frescas nádegas nuas,
a cadeira arrepiava-se fria.
A rainha viajou, a rainha foi-se embora.
Na cabeceira da cadeira os meus olhos.
Nos seus pés, de ouro velho, a minha bába.
Aqui para nós, assim como só os ramos perdidos nos rios
viajam sempre mortos, a rainha perdeu-se por outro reino, por certo.
Sem rainha as entesoadas revoluções já se foram.
Já não se repetem as batalhas de cuspo de ontem,
nem o batido de suores nas bandeiras patrióticas onde nos enrolamos.
Não me falará mais das viagens que me fez,
nem do nome dos donos das nódoas das almofadas do coche,
que por sinal fincava sempre arreio no monte onde lhe comi os pêssegos.
A rainha arrastou-se pelas suas novas ruas,
foi-se-me embora despida do coche, da bandeira, de mim.
Hoje, tal como todos os reis de voláteis impérios, perdi a coroa.
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